Novos mundos

Agrippa, de William Gibson e Dennis Ashbaugh 

O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do programa que ele utiliza, é manejá-los no sentido contrário ao de sua produtividade programada. Concordamos com a definição de Arlindo Machado acerca do uso criativo da tecnologia (Arte e Mídia, p. 14). Se por adição o conteúdo cultural for subvertido também (e não apenas a sua forma) - talvez por intermédio da técnica do détournement, na acepção situacionista -, melhor ainda. Tome-se, por exemplo, o trabalho The Fountainhead (2010), da dupla francesa Société Réaliste, uma alteração completa do filme homônimo de King Vidor, baseado no livro homônimo de Ayn Rand. Essa autora é madrinha da filosofia do objetivismo, segundo a qual o objetivo moral da vida humana é atingir a própria felicidade e que o único sistema social consistente com esta moralidade é o vale-tudo do capitalismo. O Société Réaliste interpretou literalmente o objetivismo de Rand, "apagando" todas as referências humanas do filme, uma sátira à noção anti-humanista de que a "realidade existe independentemente da consciência de alguém" (o trabalho lembra o argumento de Life After People, série que mostra o que aconteceria com o mundo sem a presença de humanos). Nessa linha de razão, adicionamos outros dois trabalhos (Machado, 2008, p.15): o primeiro é assinado por Conlon Nancarrow, músico norte-americano que fazia composições para o piano mecânico (sistema parecido com uma caixa de música), impossíveis de serem executadas por humanos: "produzindo as perfurações manualmente, era possível fazer o piano soar como nunca antes, pois já não havia o constrangimento da performance de um intérprete". O segundo é o poema Agrippa (A Book of the Dead), de William Gibson, transformado em livro-objeto pelo artista Dennis Ashbaugh. Enquanto o primeiro tinha uma função do tipo "esta mensagem se autodestruirá em 5 segundos", as páginas do livro do segundo foram tratadas com produtos químicos fotossensíveis que, ao serem expostas à luz, faziam desbotar gradualmente as imagens impressas sobre elas. A reflexão sobre o controle humano sobre sua própria memória (e sua terceirização por objetos técnicos) é óbvia.

The Fountainhead (2010), de Société Réaliste

Em vista disso, finalizamos a primeira fase da nova metodologia de pensamento projetual voltado à teoria estética. Os alunos tiveram como missão associar cartas do baralho metodológico dos objetos técnicos (fonte: Envisioning) com cartas do baralho metodológico dos objetos naturais (fonte: IDEO). O critério é aberto, sendo possível aplicar o pensamento lógico e/ou intuitivo nas combinações. Surgiram as seguintes devolutivas: a) maquinaria de código aberto + regras simples dos cupins; b) políticas de feminização da agricultura + mutualismo da mariposa e a mandioca; c) ressurreição biológica + estrutura dinâmica da palmeira andante; e d) sucessão ecológica seguida de incêndios florestais + agricultura doméstica. (Há associações ainda sendo articuladas). A segunda fase do exercício é inspirado em texto recente de Bruno Latour. Nele, o filósofo francês da ciência conclama que é preciso “imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise do coronavírus”, propondo seis perguntas aos aspirantes da vida nova. O desafio agora é, portanto, tentar responder a uma das perguntas de Latour com as associações realizadas com os baralhos metodológicos durante a primeira fase. Sugerimos, sem imposição, que o enfoque seja a quarta pergunta. Ou a quinta. Sirvam-se à vontade. O que interessa aqui é investirmos em um experiência de pensamento que tenha por objetivo imaginar outros mundos possíveis, mobiliados por objetos técnicos em harmonia com objetos naturais, não em contraposição. O que resultará, se assim for possível, em uma nova forma de arte. A atividade serve para orientar a nossa reflexão em um novo caminho: "[a]caso o artificial não é arte? E a interferência da arte e da natureza sempre tem como efeito danificar a paisagem...?” (Mikel Dufrenne, Estética e Filosofia, 2015, p.69).  

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